segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Sobre pulgas e elefantes

Então o blog estava às moscas por uns vinte dias.
às moscas não.
O blogue, assim como minha casa, e aparentemente toda a minha vida, estava entregue às pulgas.
Sim.
Aqueles seres minúsculos e pululantes, que habitam os pêlos do seu cachorro.
Sim, aqueles.

Alguns podem associá-los a pestes e doenças, outros podem lembrar dos bichinhos com simpatia, rememorando alguma pulguinha que um dia habitou um conto ou uma musiquinha infantil, ou seus fofos bichinhos de estimação. Outros, ainda, podem simplesmente associá-las à insignificância que é afinal de contas o tamanho de cada um de nós aqui na terra: "ele é uma pulga. uma reles pulguinha..." e ao significado da nossa existência.

Pois bem.

O fato é que Elas, as pulgas, vieram. Viram.
Quase venceram.
Colocaram, sorrateramente e em silêncio completo, sem fazer alarde, seus ovos (milhares deles) nas frestas de meus velhos tacos. O piso do meu apartamento é de taco. Até outro dia achava isso lindo. Hoje, sou uma pessoa mais sábia e que sabe: as pulgas compartilham dessa minha opinião.

E, num dia de calor, ela vieram. Saíram de seus ovos. E conheceram a luz .

Pisei na primeira.
Continuei meu caminho.
Veio a segunda.
A terceira. Pisei na segunda e na terceira.
Vieram todas.
Pisaram em mim.


Subiram pelas minhas pernas, exploraram minha bunda, entraram pelos meus braços. Fui toda mordida. Picada. Invadida.
Olhava meus lençóis e elas estavam ali. Olhava minhas toalhas e elas estavam ali. Nas minhas roupas, no meu chão.
Pequenas e dominadoras.
Atrapalhavam meu sono e lembravam-me que não há paz nesse mundo.



Virei metafísica. As pulgas tornaram-se caso de análise, se análise fizesse. Assunto da mesa de bar, do balcão do café, das confissões de alcova, dos papos de msn. Invadiram minhas horas, meu sono e minha mente. Eram donas do meu corpo.
estava tudo dominado. As pulgas.

Algo tinha que ser feito.
Logo.
Sem dó nem piedade.


Os sites de dedetização:

Ok, confesso. Sou do tipo que odeio insetos e bichos escrotos que saem do esgotos. Quero que morram. Que deixem meu lar, meu jantar e meu pobre paladar em paz e desintegrem-se nas nuvens do ddt mais próximo. Não suporto. Sou daquelas que vê uma barata e começa a gritar histericamente. Perco a compostura e a coragem, a força a dignidade e tudo o mais que sempre luto para manter. Não mato, não enfrento, não gosto nem de ver. Sou do tipo que em casos extremos chama o zelador.
E lá fui eu: mulher, sozinha - buscar uma empresa de dedetização.
Era um sábado.
Oito da manhã.
Internet: Pulgas. Morte. Fim. Eliminação. Solução final.
Nem piscava.
Mas confesso: foi duro. Foi difícil.

As empresas de dedetização aparentemente têm orgulho de seu trabalho.
E cultivam uma espécie de relacionamento mórbido e ao mesmo tempo afetivo com suas presas. Enfeitam seus sites com fotos dos bichos. Há ilustrações.
Mil fotos. Acompanhadas de textos explicativos.
Fotos de quando eles são larvas, fotos dos ratinhos, fotos das baratas, dos cupins, da fase seilá o quê, fotos de tudo. Aquelas que você nunca quis ver na vida. Pornográficas. Horríveis. Fotos e fotos, acompanhadas de nomes e historinhas da vida morte e reprodução dos bichos.

Era suficiente.

Liguei.

Sábado. Nove da manhã.
A primeira companhia não atendeu.
Enquanto via aflita mais uma maldita pulga ( porque pulga nunca pode ser masculino, não tinha pulgo nenhum, eram todas pulgas, as malditas) subindo pelas minhas pernas, a segunda companhia atendeu:
- Bom dia - eu disse. E logo relatei a dura, cruel e crua realidade: - Preciso de alguém que salve a minha vida.

A exploração de uma moça aflita:


O mocinho do atendimento nem piscou, estava acostumado, parecia que fazia isso todos os dias:
- Pois não minha senhora. Estamos aqui para isso.
- Graças a deus, - respondi.
- Em que podemos ajudá-la? - eu podia ouvir o sorriso do outro lado da linha, mas resolvi ignorar.
-Eu já expliquei moço: Preciso de alguém que salve a minha vida.
- O salvador - digo, o moço - está indo para a residência da senhora agora mesmo.
- Sério? ufa...
respirei aliviada.

Momento para as fac:

Não, eu não liguei para outras companhias. Não, eu não fiz outros orçamentos. Sim, eu falei "que bom, graças a deus, obrigada, ufa. ". Falei, pronto. Pronto, falei.
E duas horas mais tarde o mocinho apareceu lá em casa para fazer o orçamento mais caro do mundo.

O significado das pulgas

O exterminador vestiu suas vestes de astronauta, preparou o veneno e reinou pela minha casa por cerca de uma hora.
-Havia pulgas por todos os lados minha senhora.
- Eu sei!!!
- Tivemos que usar uns vinte litros de veneno minha senhora...
- Sei...
- Cada litro custa xis minha senhora.. .
- Entendo...
- O cheiro está muito forte, a senhora só pode voltar para sua casa daqui a dois dias.

E assim vi-me só, em meu carro, derrotada, envenenada, expulsa de minha casa por seres menores, mais numerosos e aparentemente mais fortes que eu. As pulgas eram o meu pouco salário, as pulgas eram a lembrança de uma reforma cheia de problemas, as pulgas eram a vizinha insuportável , eram sinal de como não sabia cuidar da minha casa, eram a destruição de toda a minha vida, a constatação firme e absoluta de que tudo, absolutamente tudo, estava errado, sinal inequívoco de toda a minha incompetência para a existência nesse mundo. As pulgas eram várias. Uma legião. E estavam ali para acabar comigo, tomar meu chão e meu teto, retirar de mim todo meu dinheiro e acabar com a minha pele.
Algo assim.

Naquele momento, fiz o que podia fazer:
chorei, entrei no carro, comprei sapatos e fui encher a cara na casa de uma amiga.
Depois deprimi .


Estava fudida: sem casa, sem grana, pulguenta. Era um próprio cão abandonado e sem dono, vagando pela cidade.
Sim.
A essa altura as pulgas já tinham tomado proporções elefantescas.


Fui para a casa do meu pai, refúgio sempre aberto para as minhas aflições.
Fiquei lá dois dias. No terceiro dia , voltei para casa. Aproveitei para dar uma geral, fazer finalmente arrumações sempre adiadas, organizar papéis velhos, trocar os móveis de lugar. A casa estava melhor, as coisas pareciam estar em ordem.

No sétimo dia, as pulgas voltaram.

Lá estavam elas novamente. Vingadoras, absolutas, reinantes, imortais. Eram pulgas superatômicas, mutantes, x-pulgas, sei lá. O fato é que elas haviam voltado, imunes ao veneno. E estavam ali para me ensinar algo. Nunca podemos folgar, pensar que tudo está bem, que os problemas acabaram. Não se pode deixar uma fresta, um espaço da casa sem verificação, revirem-se as gavetas, arrastem-se as mesas, desdobrem-se os lençóis.
Voltei para a casa do meu pai. Derrotada e perdida.
Era o fim.
Dei adeus a minha casa.
Retirei todas as roupas do meu armário e levei-as para a lavanderia. Esvaziei as gavetas de papel. Retirei todos os grãos da despensa, separei meus livros mais queridos.

E na casa do meu pai, deitada, esperava pelo pior.

As pulgas se transformariam em cupins que devorariam o prédio, fazendo com que ele caísse e junto com ele levasse o bairro inteiro. As pulgas eram o primeiro sinal de uma nova praga que assolaria a humanidade e acabaria com todos nós. As pulgas me devorariam viva. As pulgas festejavam sua vitória. Eu nunca mais voltaria para casa, e teria que sempre dar a patética explicação para a derrota minha na vida: foram as pulgas. Elas venceram.


E então, depois de muito choro e muita vela veio a luz:
as pulgas eram uma espécie de libertação.
Elas que ficassem com a casa.
Elas que ficassem com a roupa.
Elas que comessem todo meu dinheiro.
Não precisava de nada disso.
Não precisava de nada.

Podia ser expulsa, podia ser presa, podia ser devorada, mas sempre teria a mim. A minha consciência e a minha mente as pulgas não conseguiriam nunca atingir ou aprisionar.


Era uma mulher livre.

E montada em elefantes, pisoteei cada pulguinha. Procurei acabar com todas elas, uma a uma, em meio aos meus sonhos e ao dia a dia que continuava acontecendo. O exterminador veio novamente. Novamente cobriu meu chão de veneno. Dei uns dias.
Os elefantes faziam seu trabalho .
As pulgas pararam de me assombrar.

E como uma rainha, voltei agora para minha casa. Comprei um aspirador de pó, e ainda não peguei as roupas na lavanderia. Confesso que estou com preguiça, e me viro bem com quatro camisetas, calcinhas e duas calças. Gosto de ver o armário vazio.
Sinto falto dos sapatos.


Continuo pobre.
Continuo inviável.
Continuo engraçada.
Levo cicatrizes da guerra pela perna, braço e bunda.
Estou atenta. Às vezes sinto algo subindo em minha perna, mas quero quer que são os fantasmas de pulgas passadas.

E o elefante está ali, bem atento, para esmagar as pulgas que teimarem em aparecer. Um elefante poderoso e sua rainha sultã, que pisoteia todas elas, uma a uma. As que vivem nos meus tacos, sob meu teto e no sótão da minha mente.
às vezes a gente fraqueja e as pulgas nos invadem, e não há exterminador ou veneno que pareça dar conta. Mas aí, a gente cria força, aprende algo, compra o aspirador de pó, curte a casa do pai um pouco, faz uma narrativa mais feliz, e sobe no elefante.
E as pulgas voltam ao seu tamanho: pequenininhas .

E a gente pode voltar para casa.