quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

o choro dos alunos

atenção: o texto foi revisado e agora está um pouco melhor. : )

Ser professor é lidar com a dor dos alunos.

Quanto mais novo for o aluno, mais a dor é explícita. Quanto mais velho, mais escondida, dissimulada, mas a dor vem e se não veio nunca, ouso dizer que a tarefa do professor foi falha.

Pode ser a dor da descoberta de um limite, pode ser a dor da regra que não se quebra, a dor de um novo conhecimento que coloca em questão todo o mundo tal como era conhecido, a dor que implica atingir e ultrapassar um limite.A dor de ir para a escola, a dor de tirar uma nota baixa, a dor de um amigo que diz uma coisa ruim... O aprendizado é uma delícia, e uma das medidas da felicidade é ultrapassar nossos limites e alcançar novas alturas, mas isso não acontece sem dor.
Se foi sem dor, não foi.

Eu dou aula para crianças, da antiga quinta série, hoje sexto ano. Crianças que estão chegando ao curso ginasial e enfrentam um monte de medos novos e um monte de desafios. Uma aula típica do sexto ano é assim:
Você começa a escrever na lousa.
Quinze pessoinhas levantam a mão, ou começam a falar mesmo, sem levantar a mão nem nada:
- é para copiar?
você responde o que até então parecia óbvio:
- sim.
você vira de volta para a lousa, e novas mãos se levantam:
- pode copiar de lápis?
você responde, dura:
- não.
Uma aluna começa a sofrer:
- mas eu já comecei a copiar a lápis!!! E agora??? vou ter que apagar tudo? passar a caneta por cima? começar tudo de novo? vou tirar um zero?
você, que só queria saber de ensinar o que são substantivos, só isso, respira fundo e responde:
- é para copiar, e à caneta. Se você começou com lápis, continue à caneta e depois você passa a caneta por cima do que foi escrito a lápis e fica tudo bem.
Mais mãos se levantam:
- Mas se eu copiar à caneta eu vou errar, e aí? O que eu faço????
- Você passa um risco em cima do que errou e pronto, continua escrevendo.
e, pobre de você, professor, acha que agora a aula pode começar e você pode falar do processo de nomeação das coisas do mundo. que nada...
- e pode usar branquinho?
- pode.
- Mas eu não trouxe branquinho...
- coloca o branquinho depois...
- mas minha mãe...
Quando colocam a mãe no meio o professor sabe que é a hora de parar de dar ouvidos às questões existenciais dos alunos:
- Não em interessa sua mãe. Copie. à caneta. Pronto. Vamos lá.
É isso, todos os dias, por uns dois meses.

Hoje todos tinham que entregar o caderno de gramática. E havia matérias para passar a limpo, do ano passado. Quando começo a falar que hoje é o dia da entrega, vejo uma aluna chorando. O queixo da bichinha tremia. Os olhos cheios d´água. Ela era a aluna mais responsável da classe. Estava a um minuto de se desmanchar em lágrimas.
Ignorei.
Segui com a aula.
No fim, chamei a garota:
- Me conta, o que aconteceu?
Logo vem uma amiga atrás, esbaforida, mais bagunçada, mais esquecida, e começa a me explicar:
- deixa eu falar antes!! É que ela - a menina que segurava o choro até agora - me emprestou o caderno dela, que estava completo, para eu copiar. Eu me enganei e achei que era para entregar amanhã, e não trouxe... Nem o caderno dela, nem o meu... Mas a culpa é minha!! E agora, ela vai ficar com z?

Quem for homem, independente do sexo, que me responda:
o que fazer?

Logo todas as questões morais e éticas aprendidas nos cursos da universidades passam pela cabeça. Democracia é tratar todos iguais. Havia um prazo. O fato é que o caderno da chorona não foi entregue no prazo . quem não entrega o caderno no prazo leva z. E eu vi o olho da menina. Aflita. Angustiada. E a aflição da amiga esquecida. Ai meu deus.

Inventei uma solução maluca, pois ali na hora da aula, quero ver quem consegue ser Salomão:
- então, você que esqueceu os cadernos, fica com as duas punições: dela e a sua. Ao invés de eu abaixar um conceito de cada uma pelo atraso, eu abaixo dois seus.
- Então se eu tirar A eu vou ficar com C?
- Sim.
- A minha maior nota vai ser C?
- Sim, mas a Isa fica com A. Tchau.

Fui embora, bem incerta da minha decisão. Eu heim? Coisa mais difícil que é ser professora.

Passa um tempo, o dia acaba, e a menina que esqueceu os cadernos vem me procurar:

- Lu!!! Amanhã eu não venho na escola! Vou viajar, já está marcado! Meus pais que marcaram... como vou poder entregar os cadernos??
Quase respirei aliviada. Aquela era mais fácil:
- esse problema é seu. Se os cadernos não estiverem aqui amanhã, as duas ficam com z.
e a menina foi embora para casa, aflita.

E hoje também conversei com uma ex aluna minha, que foi minha aluna por três anos, e agora está no colegial. Ela havia me escrito um recado no orkut dizendo assim:
- Eu não aguento de saudades de você.

Peguei a moça pelo cangote e falei:
- hoje você vai almoçar comigo. e para levar uma bronca.
Depois do meu blá blá blá falando que ela tinha que crescer, se desprender do ginásio, curtir os novos professores e amigos, e etc ela começou a falar:
- lu,eu não sou de chorar, mas eu estou chorando no meio das aulas. Eu olho para os lados e vejo que das trinta pessoas da classe eu só conheço sete. Só sete!!!Eu começo a chorar. Como eu vou viver num mundo assim? E quando eu for para a faculdade então? Aí que eu não vou conhecer ninguém!! Socorro lu, me ajuda.

Sorri, mudei de assunto e começamos a conversar sobre a vida:
- E sua mãe? como está?
- Minha mãe tá bem, o problema é ela comigo.
- Como assim?
- eu sempre fui muito ligada a minha mãe, a gente sempre foi muito próxima, mas ela me proíbe de voltar para casa sozinha. Eu moro do lado da escola, poderia ir andando, e nessas, poderia fazer os programas que o pessoal faz depois da escola, mas ela não deixa. sabe, é chato. Quando ela não vem me pegar, eu tenho que esperar um irmão meu vir, e é super chato, sabe? Eu queria que minha mãe deixasse eu andar sozinha pelas ruas...
Contive meu riso, pois aquela era a menina que reclamava porque na classe dela de trinta pessoas, ela só conhecia sete.
Continuamos conversando...e o Paulo?
- Nos separamos, lu. Sabe, a gente nunca tinha assumido nosso namoro, porque... sabe? Tinha um monte de casalzinho da classe que começava a namorar, e falava para todo mundo e depois de duas semanas estava brigado. Então a gente nunca falou assim: estamos namorando. Mas a gente sempre conversou sobre a gente. E agora...

continuamos a falar, sobre banalidades, sobre a aula de teatro que estava acontecendo no pátio, sobre outras coisas. De repente, ela pergunta:
- Lu, quando você se separou, como é que foi?
- Como é que foi o quê?
- O que você faz com tudo o que você sentia e agora não sente mais? O que você faz? Para onde vai tudo o que aconteceu e que você viveu? Onde ficam essas coisas?

e eu respondi que eu não sabia. Mas achava que essas coisas ficavam na gente, como uma memória feliz de um curso ginasial familiar que depois, quando a gente vai para o colegial, não existe mais. Que a gente tinha que aprender, reaprender, a viver no agora, nesse novo mundo.
E é difícil isso, porque a gente tem que se reaprender, se reconhecer, mas que é assim, não tem jeito, as coisas mudam, e é assim e é até bom, porque sofrimento significa mudança, crescimento, e é bom que as coisas não fiquem sempre do mesmo jeito.

Ela me olhou, pouco convencida.
Acho que eu estava pouco convencida também, mas ao mesmo tempo estava muito convencida de mais coisas do que ela. E pensei: esse é meu papel. Não ligar tanto para essa dor, e mandá-la seguir em frente, sozinha, porque é isso que é a verdadeira educação.

é duro, e bom, lidar com o choro dos alunos. quando a gente cresce, parece que a gente chora menos. Não sei porque, já que as dores continuam ali. E eu queria levantar a mão e que alguém me dissesse, agora, se o traçado da vida é a lápis ou à caneta.
Queria, e não queria. Por outro lado é bom, não estar mais na quinta série.

Psicalistas

Quem é filho de psicanalista não é filho de psicanalista, é filho de psicalista.

Outro dia saí prum bar e de repente, à mesa, em meio às cervejas e conversas boas de bar, demo-nos conta que éramos três, enfileiradas ali lado a lado, três moças filhas de psicalistas. A mesa emudeceu e todos nos olharam com um misto de pena e sei lá o quê. Sim, éramos sobreviventes, e o destino havia nos unido:

- Vamos mudar de lugar!!- resolvemos, não sem antes percebermos que as três não só eram filhas de psicalistas mas de mães psicalistas, o que torna tudo mais grave.

- Mas são três linhas diferentes... - diz o amigo, conciliador, tentando diminuir o evento cósmico que ali se dava.

Então começou a brincadeira - pedante, eu sei, porém charmosa, talvez, aos interessados e iniciados nessa superstição:
adivinhar, pelas filhas, qual era a linha de cada mãe.

- Hum... você é judia? - pergunta o primeiro investigador.
- Sim! - responde a rechonchuda, ar desafiador e sexy.
- Ok, freudiana. - responde o rapaz. Ele estava certo.

- Você é argentina? - perguntou para a segunda, perua, um pouco para além do nosso gosto para uma mulher assim tão bem resolvida, mas estilosa e legal:
- sim... respondeu a menina.
- Lacaniana!!! - falou o rapaz. E ele estava certo. Foi um tapa na cara de muitos incréus. O cara era bom.

- Seu nome tem flor no meio? - perguntou à terceira menina, com saia indiana, que esquecia de pentear o cabelo de manhã:
- Sim... - reponde a guria, mal humorada, perguntando-se se deveria deixar crescer uma franja emo.
- Tem complemento indígena?
- Ok!! Todos me chamam de Rô, mas meu nome é Rosa Erecê!!!- revela a garota, quase gritando. Confesso que dava para vislumbrar, entre a revolta, uma ponta de orgulho pelo nome esquisito. O moço ri, logo em seguida faz cara séria e solta o veredicto:
- Reichana. Terapeuta corporal, tem incenso na sala da sua mãe...

A mesa estava em silêncio.

Estávamos ali expostas. As três filhas de psicalistas. Amigas por livre vontade. Que Freud nos perdoe mas puta-que-pariu.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

seis segredos

A Camila me pediu para contar seis segredos. Ora, se são segredos não vai ser aqui que vou contá-los, embora o número de leitores desse cantinho seja tão reduzido que mesmo estampados aqui os segredos talvez continuem quietos nos seus cantos, silenciosos e intocados.
Comecei a pensar sobre segredos e cheguei à conclusão que tenho poucos pouquíssimos segredos. Segredos de cama não são segredos, são intimidades que devem ser sussurradas ali, na cama, ou no ouvido de quem quero que vá para lá. Segredos de família pertencem à esfera do divã, ou dos barracos em família, e como isse aqui não é um filme do Lars Von Trier também não é o caso de proclamá-los assim em praça pública.
Os segredos das minhas amigas confiados a mim, não sou eu que vou revelá-los - se bem que um segredo contado é um segredo que pede para ser espalhado, louco para deixar de ser segredo e passar à condição de notícia.

Mesmo se transformasse isso aqui em cama, divã e ouvidos amigos ( e o blog, às vezes, é tudo isso mesmo ainda que sem sê-lo de fato) não lembro de seis segredos. Acho que meus segredos verdadeiros ficaram tão quietos nos seus cantos que me esqueci deles, então que eles fiquem por lá. Em suma, sou do tipo que senta e conta tudo da vida, para todo mundo, e gosto de pessoas assim e gosto que seja assim.

De qualquer maneira, o convite é gentil, de pessoa amiga, e aqui vão então seis coisas que quem não morou comigo não sabe sobre mim:

- durmo abraçada com dois bichos de pelúcia, um leão e um bicho preguiça. Os bichos me foram dados pelos dois homens que amei na vida, um passado e outro ainda presente. O engraçado é que os bichos revelam muito do que é cada um desses homens.

- não tenho um cachorro porque não tenho coragem de me responsabilizar por nenhum ser vivo nesse momento, a única planta que tenho em casa vive à mingua, coitada, porque ela não fala e não se mexe e eu esqueço que ela é viva.

- dizem que eu sou a mulher mais mulherzinha do planeta, mas eu deixo toalha molhada em cima da cama e sapatos na sala.

- não consigo deitar na cama e dormir direto. Preciso sempre ler alguma coisa e gosto muito quando sonho a continuação do que estava lendo.

- sonho em palavras. Reparei nisso ultimamente, meus sonhos são narrativos, quase não têm imagens, têm muitas falas e alguns são pura fala. Acho. Não sei. De qualquer maneira fico contente quando me lembro dos meus sonhos porque fico achando que isso é um sinal de saúde mental. Não é sempre que me lembro dos meus sonhos.

- Quando vou à academia de ginástica fico um tempo grande no vestiário reparando em como as mulheres se cuidam para aprender como é que faz.

é isso. Um beijo Cá.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

um dia

acordei e vi que estava passando mal pelo excesso de pizza da noite anterior. Ainda bem, - pensei - que tudo escorra pela privada. Fiz as contas do mês e percebi que estava já falida, já antes da segunda semana, mas que tinha o suficiente para as contas básicas e decidi que esse será um mês sem compras, sem livrarias, sem sapatos e sem grandes saídas para jantares e almoços e achei até simples tudo isso. Fui ao banco, retirei o dinheiro da faxineira, do condomínio, retirei um dinheiro a mais para a moça que achara a minha carteira e fiquei com o resto, que deve durar duas semanas.
Lavei a roupa suja da semana, arrumei a casa, fiz meu cronograma de como ficarão meus dias. Fiquei assustada: muito trabalho, pouco tempo livre. Uma escolha.
Resolvi finalmente resgatar minha carteira que fora furtada há mais de um mês, uma pessoa a tinha encontrado e me ligara avisando. A pessoa morava em guaianazes, longe bem longe daqui, liguei, pedi desculpas pelo sumiço, e marquei o encontro para as quatro da tarde.
Almocei com meu avô e encontrei minha grande amiga, que me acompanharia na viagem de metrô.Fomos e voltando conversando, duas horas de passeio pelo metrô da cidade imensa, e ficamos ambas mais leves na volta. Quem achou minha carteira foi Dona Rosária, uma senhora que vive de catar latas. Sempre acha documentos. Viu a carteira e pensou: que carteira bonita! vou ficar com ela, estou precisando de uma carteira. Abriu a carteira e ali viu todos os documentos. "Não ia conseguir dormir... Meu sobrinho que ligou para a senhora." Ligaram para o lugar onde faço as unhas, de lá, me deram o telefone do sobrinho, que deu o telefone da vizinha da D. Rosária, que veio me encontrar e devolver a carteira.
- Que bom que ainda há pessoas conscienciosas nesse mundo, comentou meu avô.
Fui para casa, sem programa para o final de domingo, passei no supermercado e comprei comida para mim e para a faxineira, que virá depois de amanhã. Tenho o que comer de manhã e à tarde, e tenho lanchinhos para não ficar gastando dinheiro na rua.
Comecei a anotar o que como para descobrir que somente no almoço com o vovô já tinha consumido quase o dobro do necessário.
Na minha casa, organizei o dia de amanhã, reli e me assombrei com o Estrangeiro, li um capítulo de um livro lindo e vim escrever.
Ele não ligou, nenhum ele ligou. Tenho saudades e me falta um corpo para me abraçar, mas o dia aconteceu e eu fico com uma sensação de que venci.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

enquanto isso, no ônibus...

... o cobrador fala:
- a próxima parada é o hospital das clínicas. Quem for cuidar da saúde, é para descer aqui mesmo. Agora, quem descer aqui e não tiver jeito... aí... é a última parada mesmo.

e mantém sua cara, impassível, de cobrador cansado que já viu tudo nessa vida.